Gestão Segundo Guimarães Rosa

Carlos Henrique Viana de Castro
Anestesiologista
CRMMG 18470

Devo iniciar solicitando desculpas a Guimarães Rosa e a todos os leitores que se dedicam ao rico estudo de sua obra, pois essa utilização, no contexto do mundo corporativo, pode soar como uma restrição à sua potencialidade; no entanto, a simples possibilidade da ressignificação de comportamentos e de atitudes induzida pela identificação com certos aspectos de sua obra, cria uma enorme potencialidade para transformações, portanto tal conjuntura impele-me a tentar. 

Guimarães Rosa, como tantos outros artistas, através de suas obras monumentais, permite a universalização de determinados conceitos, de sentimentos, oferecendo uma forma alternativa de explorar a realidade que não seja apenas pela razão, ou como tão bem definido por ele próprio:

-“Como eu, os meus livros, em essência, são anti-intelectuais – defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiana”. E continua… “existem elementos da língua que não são captados pela razão; para eles são necessárias outras antenas”.

Dito de outro modo e utilizando uma referência, citada no mundo corporativo, a saber, François Jullien em o Tratado da Eficácia: “a questão será, portanto, perguntarmo-nos se o que foi tão bem sucedido do ponto de vista da técnica, aos nos tornarmos mestres da natureza, vale igualmente para a gestão das situações e das relações humanas.” (gestão de pessoas, comentário meu).

A razão como único instrumento exploratório da realidade é um fenômeno relativamente recente, tendo suas bases na filosofia Platônico/Socrática. De uma forma sintética, os gregos criaram um modelo, um mundo ideal (eidos) que se constituiria em um gabarito ou objetivo a ser atigindo (telos) e toda a nossa ação seria voltada para transformar este ideal em realidade.

E quanto mais nossas ações e atitudes aproximam-se dessa forma ideal, tanto maior nossa chance de sermos bem sucedidos (felizes). Criamos até indicadores e metas escalonadas para evidenciar a nossa proximidade, o nosso atrelamento a esse mundo ideal.

A limitação deste modelo advém do fato de que: ao aceitar a existência de uma verdade maior, criamos todo um modelo baseado neste conceito e não questionamos a existência desta verdade, deste gabarito, deste mundo ideal; permitindo que a razão reine absoluta.

O primado da razão, apesar de limitar o entendimento das situações novas, é relativamente confortável, pois sentimo-nos seguros por utilizar esta ferramenta que conhecemos muito bem.

No entanto, partindo da afirmação de Guimarães Rosa, cabe o seguinte questionamento: o caminho para entendimento do mundo é traçado, única e exclusivamente, pela razão? Conforme o próprio Guimarães Rosa sugere há necessidade de outras “antenas”.

Talvez uma das limitações da razão seja o fato de utilizar o pensamento e a linguagem para descrever e dar ação a uma série de atributos, no entanto, a linguagem e as palavras tem restrições; nas dizeres de Diadorim: “muita coisa importante falta nome”.

Como exemplo de uma forma alternativa da percepção da realidade, cito “O recado do Morro”, de Guimaraes Rosa – neste conto, Pedro Orósio, guia experiente, conduz um grupo eclético de pessoas entre dois lugarejos, no interior de Minas. Pedro Orósio desconhece que existe uma trama para assassiná-lo quando alcançar seu destino.

Durante a caminhada, encontra vários personagens: um menino, loucos e um idiota, portanto um grupo de pessoas a quem, normalmente, não damos a devida atenção, e, todos alertaram Pedro Orósio sobre a fatalidade de seu destino; seria assassinado. No entanto, ao chegar ao seu destino, Pedro Orósio consegue escapar da emboscada porque recordou-se de uma canção e, ao cantarolar a música, teve a percepção da sua morte iminente.

Resumidamente: identificamos a possibilidade da percepção da realidade através da arte ou da intuição de pessoas que não estão impregnadas pelo ambiente da empresa. No mundo corporativo, não raro, escutamos, em infindáveis reuniões:

 – Você é novo na empresa, ainda vai aprender! Você não entende a cultura da empresa!

 – Este sujeito é um psicopata! 

Uma percepção externa de uma pessoa que está começando na empresa pode ser muito útil no mundo atual que se encontra em franca transformação. No entanto, o mesmo mundo corporativo que incentiva e, até mesmo cobra compulsivamente por inovação, com frequência rotula de maluco ou de novato quem pensa diferente na empresa. Tal contexto gera uma inibição da capacidade de inovar da empresa. 

São vários os cursos de liderança que alertam os líderes da empresa para se ter uma escuta mais atenta. Os consultores utilizam parábolas para explicar estes conceitos, muitas vezes tão elaborados que, a meu ver, perdem seu efeito prático.

Um verdadeiro abismo, quase que intransponível (explicarei mais tarde o quase), entre a teoria e a prática, capaz de desencadear apenas um sentimento de incapacidade e de impotência nas pessoas em suas atividades na empresa. Como consequência os conceitos são entendidos nos cursos, mas sua aplicação prática é muito limitada.

Há um mundo real e um mundo corporativo?

Os representantes do mundo corporativo, usando uma linguagem especial, criaram um mundo com características próprias, um mundo com prêmios e reconhecimentos particulares, um mundo ímpar e ideal, que passa a ser referência para as empresas.

No entanto, o acesso a este mundo é limitado aos gurus, seres iniciados, sacerdotes de terno e gravata, que legitimados pela relação saber-poder exercem a posição de intermediários, verdadeiros oráculos, que atuam permitindo a conexão entre os dois mundos (por isso o quase intransponível).

A ideia de um mundo corporativo segregado, separado, sagrado não é um conceito novo, Platão já fazia isto com o mundo das ideias; os padres católicos vendiam indulgência para o mundo ideal, etc. “nada de novo debaixo do sol.”

Em Grande Sertão: Veredas (GS:V), Guimarães Rosa demonstra exatamente o contrário. O “sertão é do tamanho do mundo”, apesar do romance ser ambientado no sertão e o vocabulário ser típico da região, Guimarães Rosa descreveu temas referentes aos grandes problemas que afligem o Homem. Dito de outra forma, os limites geográficos do sertão não são suficientes para conter os conceitos emanados da leitura.

Nota-se um esforço de Guimarães Rosa em situar o homem em um contexto uno, não segregando o mundo do sertão e um outro mundo real: o sertão e o mundo confundem-se quando são discutidos temas que dizem respeito ao Homem. “O sertão é sem lugar.” 

Na contramão desse conceito de unidade, a criação do “mundo corporativo” evidencia a forma fragmentada e reducionista do pensar da cultura ocidental. 

Visão Sistêmica e modelo Mental

Há mais de uma década, Peter Senge enumerou as cinco disciplinas necessárias para uma empresa ser bem sucedida na modernidade: (1) pensamento sistêmico, (2) domínio pessoal, (3) modelos mentais, (4) visão compartilhada e (5) aprendizagem em grupo. 

Um dos grandes problemas para as empresas, principalmente, para aquelas que atuam em vários setores é a fragmentação dos processos. A capacidade de perceber a fragmentação, identificar os fatores potenciais de integração e promover as transformações exige uma visão distanciada e ampla dos processos.

Peter Senge alerta em “A Quinta Disciplina”, que a ausência de uma visão sistêmica e a utilização de modelos mentais (formas preconcebidas de raciocínio) são responsáveis por decisões equivocadas e são fatores limitantes da capacidade de aprendizado da empresa. 

Em GS:V, Guimarães Rosa traduziu, poeticamente, este conceito escrevendo:

 -“Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas…”

Desta forma, a visão proporcionada pelo distanciamento das situações e determinados cenários mercadológicos permite a percepção mais apurada, fornecendo subsídio para tomada de decisão de forma menos reativa.

Com relação aos “modelos mentais” de Peter Senge, Guimarães alerta para uma escuta atenta, uma escuta isenta de ideias pré-formadas, uma escuta que exige proximidade:

“Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo; e escute desarmado.” “O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso.”  

Domínio pessoal, mudanças e transformações 

Os cursos de liderança são categóricos em afirmar: o autoconhecimento é fundamental. Tal afirmação é ratificada e o seu conceito ampliado, no Tratado da Eficácia, de Francois Jullien, que afirma: “a transformação de si e a transformação dos outros são igualmente progressivas e uma é consecutiva à outra: é porque a autenticidade interior não se desmente, ela é capaz de dar fôrma a todo o comportamento; com o tempo a autencidade se torna transparente e depois de tão completamente manifesta, …reage necessariamente sobre o que está em volta transformando-o”. 

Riobaldo passa por um processo de transformação semelhante: “Fui o chefe Urutu-Branco – depois de ser Tatarana e de ter sido o jagunço Riobaldo. Essas coisas larguei, largaram de mim, na remotidão. Hoje eu quero é a fé, mais a bondade.” A transformação, como sugerida por François Jullien, a transformação de si e a transformação dos outros, é sofrida por Riobaldo em sua travessia e no seu viver. Esta transformação, que fornece a dimensão do autoconhecimento, permitiu que fosse o líder do bando, em um primeiro momento e, posteriormente, o fazendeiro. Tal transformação mostrou-se um processo complexo – “só uma transformação, pesável”. 

O mundo corporativo apregoa o autoconhecimento, como um elemento de sucesso, como um elemento-chave na capacidade de liderar, no entanto, este é um processo complexo e, com frequência, é um conceito que não fica muito claro para quem participa dos cursos relâmpagos, normalmente realizados nos fins-de-semana.

Isto cria uma expectativa nas pessoas, pois deixa claro que: “ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas.” Por isso, observamos uma verdadeira comoção durante as apresentações cinematográficas dos gurus; as pessoas identificam-se, momentaneamente, com a apresentação, mas ao retormar a rotina de seus escritórios, os ensinamentos são esquecidos, pois não muda a pessoa e não muda a empresa. A proatividade era, na verdade, uma reatividade disfarçada.

Vivemos em um mundo cujas as mudanças são muito rápidas. Basta vermos o conceito de hospital da década de 70 e os hospitais de hoje. Palavras do tipo tweetar, blogueiro são agregadas ao vocabulário de crianças e adultos rapidamente.

Mudanças ocorrem em uma velocidade estonteante e muitas vezes resistimos, buscamos situações que conhecemos, evitamos as incertezas ou tentamos esquadrinhar as mudanças com a ferramenta que temos maior domínio. Novamente, percebemos que é necessária uma nova postura frente a estas mudanças, a postura de Riobaldo atesta:

Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados… Como é que posso com este mundo?… Ao que, este mundo é muito misturado…” ou,

No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso…”

Como lidar com todos esses aspectos, garantindo a liderança no mundo corporativo, Francois Jullien, sugere que:

Por causa disso, para assegurar sua influência sobre o mundo, para nele exercer seu domínio, o sábio não age – não mais do que o estrategista (os dois papéis coincidem nesse ponto) -, ele transforma. Pois, ao contrário da ação, que é necessariamente momentânea, mesmo quando se prolonga, a transformação se estende no tempo, e é dessa continuidade que provém o efeito, torna-se manifesto sem (precisar) se mostrar.” Existe um paradoxo nessa citação e o mundo corporativo. Não agir no mundo corporativo é sinônimo de incompetência.

Há uma necessidade imperiosa de estabelecer uma relação de causa-efeito para mostrar que um indivíduo foi a razão do bom resultado ou que tem ideias novas, inovadoras. Se fez tudo isso e não se mostrou, além da incompetência é estúpido, na visão do mundo corporativo. Mostrar-se (ser admirado), estabelecendo uma relação de causa-efeito  é condição de existência no mundo corporativo.

Cite-se a crise econômica de 2008. Anteriormente a 2008, o bonus pagos aos executivos, do mundo corporativo nos EUA eram vultuosos. Em 2007, os executivos das principais corporações americanas ganhavam 344 vezes mais do que o trabalhador médio, comparativamente, na década de 1980, os diretores presidentes das corporações recebiam cerca de 42 mais que seus empregados.

O mundo corporativo entendia e, ainda entende, que os lucros auferidos pelas empresas era função direta da atividade de seus executivos, relação de causa-efeito direta e os executivos ratificavam esta ideia. No entanto, veio a crise em 2008, e os mesmos executivos atribuíram o desastre econômico às forças econômicas e sistêmicas.

A “síndrome do inimigo está lá fora” é quase sempre uma forma limitada de entendimento da realidade. “Lá fora” ou “aqui dentro” fazem parte de um único sistema. Como Quelemém de Gois respondeu a Riobaldo: “Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais…”Não seria, no mínimo razoável, argumentar que essas forças sistêmicas respondem, também, pelo ganhos significativos no período pré-crise? Mas algumas perguntas, podem trazer à tona respostas desconcertantes, repostas que podem realmente mudar um cenário, como escreveu Guimarães Rosa, GS:V: Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”

Frequentemente as metas, a tecnologia da informação e às vezes a obsolescência são colocadas como os maiores desafios do mundo corporativo. Permitam-me discordar frontalmente.

Um dos maiores desafios de exercer as atividades no mundo corporativo é a criação de um ambiente propício para que as pessoas sejam confrontadas e instigadas a rever atitudes, conceitos e comportamentos, muitas vezes arraigados e solidificados no que convencionou chamar de cultura da empresa – desfazer uma sensação de um “já sei”, “de um já conheço”, etc.

Uma ambiência que possibilite a afirmação de Riobaldo: “Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba.” Uma vez conseguida essa ambiência, cria-se um momento adequado para as transformações. Tal momento deve ser construído com extrema cautela, para que a inclusão das pessoas no processo seja permitida, do contrário, teremos apenas resistências e vaidades feridas.

Assim, penso que estamos vivenciando várias mudanças que têm um impacto enorme em nosso comportamento e em nossa forma de viver e há carência de lideranças e de referências éticas. A agenda pública quase que já é domínio das redes sociais. Cada cliente com seus smartphones e acesso à internet são repórteres de tempo integral que postam opiniões e imagens, instantaneamente, permitindo que a filosofia e os valores das empresas, estampados em folders nas paredes, sejam confrontados diuturnamente. 

Estes belíssimos folders se multiplicam nas paredes, relacionados diretamente à eficiência do departamento de marketing, no entanto, não observamos com a mesma clareza esses mesmos valores materializados na prática da empresa, no relacionamento com seus clientes.  Mas os clientes estão atentos e munidos de ferramentas de divulgação nunca antes pensados.

Neste contexto, a dificuldade da empresa em manter-se coerente com seus valores, frente a imperiosa necessidade de venda e lucro cria um distanciamento com seu cliente, mas como disse Riobaldo: “afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.”

Esse pequeno artigo não tem a intenção de apresentar uma figura nítida, pelo contrário, trata-se de um mosaico montado com peças rudes e de encaixes pouco precisos, mas sugere a delimitação e a visualização de um quadro. Não tem o objetivo de negar todo o desenvolvimento nas diversas áreas do conhecimento, trata-se apenas de um pequeno estímulo para a reflexão.

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